Muitos insetos voadores juntos e em movimentos rápidos,
confusos, inextricáveis entre si. Rodopiando, conversando, trabalhando,
cochichando sobre tudo, alguns mentindo sobre tudo outros pensando em alimento
outro em reprodução. Confuso, muito confuso. Não estava claro o que queriam, o
que diziam, era densa convenção, via-se de longe. Política, sexo, fofocas, dá
quase no mesmo. Amores, mortes, nascimentos, dá quase no mesmo. Muitos sentimentos,
muita informação, tudo muito junto, uma trama irresoluta. Muitos pareciam saber
aonde queriam ir, outros estavam apenas pela dança. Intensidade, ao mesmo tempo
leveza. Onda assaz; juntos formavam uma nobre balada. Um zunido uníssono e
firme a cortar som, dispersando as partículas no ar, suspensas por acaso, sem
sentido. Formava um globo quase esférico, mas à cada novo passo se transformava,
ora oblongo, ora oblíquo, às vezes formando uma lança, noutras vezes um vórtice.
Vários deles, reunidos em voo sagrada, num êxtase aéreo quase como que envoltos
nos mistérios de Baco. Inebriados em sagrado batimento de asas, delirantes. Evitando
a luz, por vezes, pois queima, a luz da morte. Quase não se via através deste
oráculo de deidades voadoras, espiralando em harmonia com o tempo, com o vento
com a órbita. Oliva verde ou cana era a cor daquele monumento vivo e dinâmico,
deífico. Encontro de antenas, asas, abdomens, cabeças, tarsos, choques de
elytras. Talvez um intruso luminoso, Lampyris, brilhando, invadindo, ferindo,
confundindo. Mas logo desaparece do baile, sem convite, nem acompanhante. Quis tocar,
participar, mas pensei ser um humano mais intruso ainda naquela reunião. Mas estava
enfeitiçado com o a valsa insectoide, talvez só minha mão através deles e eu
estaria maravilhado, satisfeito. Então aos poucos caminhei naquela direção e
notei que se afastaram um pouco com a minha chegada. Mas então decidi
participar como um deles. Me joguei por entre eles, ignorando que poderia ser
picado, ferroado, mordido ou que pudesse engolir algum ou ter um deles
invadindo meus ouvidos ou nariz. Mergulhei naquela nuvem misteriosa e por
alguns segundos participei de uma festa insectoide. Fui um deles por alguns
segundos eternos.
PORNO
O divórcio foi uma das piores coisas que já tive que enfrentar
nesta vida. Audiências intermináveis e ter que encarar... Procedimentos
exaustivos, idas ao Fórum, papeis, papei e mais papeis... Mas, enfim, estou
aqui, devidamente divorciado, nem sei como me sentir, mas é em parte estranho,
em parte um alívio.
As imagens voltam sabe...
Depois vêm os cheiros, as
músicas, os lugares...
Anos de amor que se
transformaram em alguns minutos de ódio e, por fim, segundos sobre o papel
sentenciando nosso desencontro. Esqueço já. Agora uma nova rotina, novos
hábitos, novas pessoas, novos ares, novos lugares, estou animado até. Parece
promissor desde já: tenho muitos filmes para ver, muitos livros para ler,
muitos exercícios a fazer. Um novo eu que começa aqui. No trabalho, muitas
coisas a fazer, muita produção, muitos planos. Esse é só o primeiro final de
semana sem... Enfim, evitar pensar, evitar lembrar, evitar. Tenho esses dois
longos dias para inúmeras e fantásticas possibilidades inovadoras e me parece
muito promissor. Estou até satisfeito com isso, poderia dizer que estou até
mais confortável assim. Afinal, ninguém precisa de ninguém. Eu não preciso de
ninguém, está tudo bem, e o resto vem.
Hmm... os desejos voltam sabe...
Bom, é normal, está recente. Tá tudo tão recente, não dá nem pra
esquecer um segundinho que seja...
Fiz um sanduíche, estou bastante satisfeito com ele, inclusive, e
recarreguei meu estoque de cerveja na geladeira, está tudo como eu sempre quis (?).
Sim, está, ah se está. Claro que está! E pra completar reservei um filme para
ver o conforto da minha cama, na companhia de minha cerveja... não consigo nem imaginar o que poderia ser melhor que
isso. Deixe-me ver... hmm... aqui está: um bom suspense para trabalhar agora
outras áreas que não as dos sentimentos. E...play.
Os primeiros vinte minutos são sempre essa enrolação mesmo? Vou
pegar outra cerveja. E vou pegar logo mais uma pra garantir e não precisar me
levantar para uma terceira, ótima estratégia esta minha, estou realmente feliz
comigo mesmo. Metade do filme já, e venci alguns bons cochilos, eu sei que a
cerveja causa isso. Então vamos animar isso aqui, estou sozinho mesmo. Evitando
pensar... evitando. É hora de radicalizar, vou exorcizar tudo que lembra você. Prepare-se
porque esta será a minha pior vingança. Sim, eu vou colocar o primeiro pornô
que aparecer, isso. E mais, vou entrar dentro dele e fazer tudo o que eu
quiser. Uma rápida procura... todos esses anos e eu nem assistia filmes deste
gênero, estão modernos, bem produzidos. Eu só tinha olhos para... enfim, ah,
aqui está. Há uma introdução bem encenada, até divertida, forçada, caricata. Tudo
bem, porque o melhor estar por vir.
Mas... um momento. É impressão minha ou essa atriz tem os olhos
parecidos com os seus? Ou isso foi a cerveja? Ou isso foi a saudade? E demora
pra para de sentir saudade? E demora pra esquecer como você é? De repente é
repugnante, e mesmo em toda a sensualidade que o filme promove, estou um pouco
enojado. Acho que foi a cerveja, ou a saudade.
E as imagens voltam mais fortes, sabe...
Parece que vou chorar ou vomitar, que fraqueza a minha, que
frouxidão. Que decepção comigo mesmo, que vergonha. Eu me vejo assim e quero me
esconder de mim mesmo. Um divorciado, um pouco bêbado, chorando com um pornô. Que
situação deplorável! Nem consigo me enxergar assim, nem ao menos me tocar, nem
eu mesmo me desejo, quem dirá você. O filme segue em frente, mas fica mudo e
embaçado, porque de repente eu vejo você, aqui, perto de mim. Tão odiosamente
você. Mas não está distante de ser como a atriz do filme, está com a sua roupa
de dormir, listrada. E de repente parece o quarto que ainda temos intacto na
nossa casa. Seu abajur com uma luz fraquinha que eu sempre prometo que vou
trocar por um melhor, seu lençol preferido, que a gente não divide porque você o
usa pra apoiar a cabeça, com aquela mancha de vinho, sim, aquela mancha de vinho. Tantas memórias aqui agora, como num filme.
Mas é uma imagem embaçada, mesmo assim. Não entendo se me sorri ou se está
séria, nessa penumbra do passado tão recente. Não ouso dizer nada. De repente,
acho que isso sim é confortável, uma lembrança aconchegante, será pedir demais
morar numa lembrança? Eu acho que a bebida não me fez bem. Queria vomitar você.
Dentro de mim, você me invadiu com sanduíche, cerveja e pornô.
As imagens voltam, você não...
Parece que cochilei, parece que foi um sonho, uma memória tão
viva. Tão próxima, tão reluzente, tão confortável. Vou recobrando os sentidos,
os sons pornográficos ainda estão lá. Eu que viajei para longe. E de repente
quero desligar a televisão e migrar pra um sonho onde só esteja você. Vou
recobrando a sanidade que perdi quando me lembrei da gente. E estou ali
sozinho, desgraçado, numa sarjeta confortável, num tormento aconchegante que é lembrar-se
de quem a gente se separa sem querer. E depois a gente quer voltar sem mais
conseguir. O melhor a fazer agora é esquecer. E dormir.
Dormir pensando que fui invadido por você.
Por um sanduíche, uma cerveja e um pornô.
'LETTRES D'OUBLI', par Antinous
A poesia de 'Oblivion' (2018) está reunida e traduzida para o português neste zine ilustrado e organizado por mim. As fotografias e desenhos novos e antigos também foram feitos por mim. Acessem o link abaixo para ler e fazer e salvar o arquivo. Boa leitura a todos!
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