Tudo o que nos ensinaram foi isto. E era assim que todos
nós estávamos obrigados a viver. A uma terra cujo futuro não existe, nós fomos
enviados. Aos nossos pais, irmãos e primos, enviamos cartas e mensagens que
nunca foram respondidas. E agora já não havia um lar para onde poderíamos
retornar; e talvez não houvesse um lar para onde poderíamos ir.
As primeiras barricadas foram ao redor da cidade. Numa
cidade onde não havia futuro. Eles cercaram tudo e construíram muros para que
não pudéssemos sair. Colocaram sentinelas em todas as saídas e então soubemos
que não restaria saída senão obedecer às ordens. Os primeiros sumiços foram
percebidos com assombro e os que se seguiram foram instalando um terror em
nossas mentes. Era frio, e estávamos todos famintos num pequeno cubículo,
naquela rua onde havia sumido alguns dos nossos vizinhos, na calada da noite. Choramos
quase tudo o que tínhamos para chorar e então restou-nos planejar uma fuga
secreta. Colocaram tábuas em nossas janelas, por isso nunca mais tínhamos tido a luz do
sol como antes. Os nossos diários seriam encontrados e, com eles, pistas
seriam desenvolvidas para perseguir nossos rastros, por isso os queimamos. Estávamos
numa jaula com o leão. Encontramos, para nossa sorte, um túnel abandonado num alçapão do prédio vizinho e planejamos
uma fuga através dele. Nunca havíamos explorado o túnel até o seu final, então
não sabíamos ao certo para onde ele iria, mas seria a nossa única chance de
sobrevivência. Os escombros poderiam desabar e nos esmagar ou poderíamos nos
encontrar com água e ter de voltar. Poucas eram as chances de nosso plano
funcionar, mas era o único que tínhamos. Foi numa noite gelada, a neve do lado
de fora cobria os postes em quase um metro. Arrumamos num saco de batatas o que
poderíamos carregar e seguimos para o prédio vizinho. O túnel estava atrás de uma estante que colocamos para cobrir a entrada, onde ficava
a lavanderia. O frio insistia, o barulho lá fora era assombroso, o vento
riscava nas janelas e soava como passos lá fora. Não há futuro nesta cidade. E mesmo
que haja, só os ossos restarão. Corremos por alguns metros e depois caminhamos
por algum tempo que para nós pareceu interminável. O túnel não parecia
estrutura de todo segura ou ao menos concluída com planejamento anterior. Estava
simplesmente ali, nos esperando para percorrê-lo. Aos nossos passos, algumas das
madeiras que serviam de sustentação começaram a desmoronar e atrás de nós o
túnel se desfazia. O túnel parecia dar acesso à única ponte da cidade. E soubemos
que aquela ponte seria a nossa faúla de esperança última, ou a nossa carta de morte. Muitos
precisam de pontes em suas cidades, para servir como saída quando houver apenas a
ruína. Pontes que são construídas para unir lugares, aproximar pessoas e
começar histórias. Mas são através das mesmas pontes as fugas se dão, são elas
que nos guiam para novos começos e para a escritura de novas histórias. O oceano
pincelava a extremidade deste lado da ponte, e na outra extremidade uma nova
vida nos aguardava. Eles cercaram a cidade, e igualmente monitoravam as pontes.
E por um momento encontramos a nossa chance de escapar. Por cima da grande
ponte, avistávamos toda a cidade baixa, as sirenes policiais em busca de novas
vítimas e podia-se entender como nossa cidade havia sido transformada numa
grande jaula circular. Os leões estavam todos à espreita, os olhos brilhavam,
ainda mais no momento que nos encontraram. O ato de traição fora constatado em
nossa fuga secreta. Brilhava a lua branca e, embaixo, uma nova cor luminosa
tomava os nossos olhos. Era vermelha a luz das grandes labaredas que rodopiavam
ao redor das grandes colunas e cabos da ponte. Estava em meio a chamas. Isto é
o que eles fazem, é isto que foram ensinados a fazer. Queimar pontes. Nossas chances
de sobreviver, de fugir do poder tirânico. As pontes resistem mesmo sobre as
cidades de ruínas. É através delas que construímos nossos sonhos, nossos
planos, mesmo que pareçam impossíveis. As pontes nos levam a lugares que ainda
nem conhecemos e que talvez nunca estivemos. Construir pontes. Nossos corações
estavam destroçados ao avistar as grandes chamas que transformaram numa grande
ruína o caminho suspenso que nos levaria ao futuro incerto.
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